Rafael Marques de Morais, 5 de Maio de 2016
“Os doentes não
pagam. Só os mortos, para serem conservados por um ou dois dias na morgue”,
explica um responsável do Hospital Regional de Cafunfo, município do Cuango,
província da Lunda-Norte.
Apesar de ser a
zona mais rica de Angola, em termos de exploração aluvial de diamantes, a
extrema pobreza na região atingiu também a administração local, que se vê
obrigada a cobrar dinheiro pela conservação de cadáveres na morgue do hospital
público.
Zinha de Castro,
de 40 anos, faleceu na madrugada de 4 de Maio. Justino Pedro, o seu ex-marido,
informa o Maka Angola de que ela morreu de febre-amarela. “Tivemos de comprar
um tambor de gasóleo [200 litros] por 35 mil kwanzas [US $212 ao câmbio
oficial], para conservar o corpo dela na morgue do hospital. Entregámos ao
chefe do património, Simão Jonas”, relata Justino Pedro, afirmando ainda que a
epidemia de febre-amarela, em Cafunfo continua a espalhar-se pelas comunidades.
“Por dia, estamos
a enterrar mais de dez pessoas. Por falta de vacinas, de uma seringa ou de uma
aspirina no hospital, as pessoas estão a usar folhas de mamoeiro, mangueira,
abacateiro ou laranjeira, ou outras folhas para tentarem tratar a doença”,
lamenta.
O entrevistado
refere ainda que foi interrompida a rotina dos cidadãos em recorrerem à vizinha
República Democrática do Congo para tratamento. “Os angolanos estão a ser
impedidos de entrar na RDC, por causa da epidemia de febre-amarela. Eles não
querem que espalhemos lá a doença.”
Fonte hospitalar
que prefere o anonimato revela “que os médicos negam que haja uma epidemia de
febre-amarela aqui. Mas nós verificamos todos os sintomas a olho nu e as muitas
mortes diárias que tem causado”.
A mesma pessoa
revela: “Não fazemos diagnósticos no hospital, porque não temos sequer
seringas, luvas, algodão. Já nem sequer falamos em medicamentos.” O hospital
dispõe apenas de um técnico de laboratório.
Aos 16 anos de
idade, Cecília Matias faleceu, em Cafunfo, vítima de febre-amarela. “Comprámos
dois tambores [de 200 litros cada] de gasóleo nas bombas, por 64 mil kwanzas
[US $387 ao câmbio oficial], para conservar o corpo da Cecília durante dois
dias na morgue”, explica Madalena Matias, uma tia da vítima. “Fomos informados
pela direcção do hospital de que não há combustível. Um dos responsáveis do
hospital fez-nos a cobrança directamente e instruiu o mecânico para receber os
dois tambores de combustível como pagamento, para abastecer o gerador.”
Madalena Matias prossegue:
“Tivemos de pagar mais 10 mil kwanzas ao segurança da morgue para garantir que
a gaveta está a funcionar bem. As outras [cinco gavetas] não funcionam em
condições e os corpos saem de lá a cheirar.”
Em média, de
acordo com fontes hospitalares, a morgue recebe diariamente entre três a cinco
cadáveres. Todas as famílias têm de pagar, ou em combustível, ou o valor
monetário equivalente a 200 litros de combustível.
Eduardo
Muatxivumbi pagou 30 mil kwanzas pela conservação, durante apenas uma noite, do
corpo do sobrinho André Silva, de 21 anos. “Eu paguei na secretaria da direcção
do hospital, onde se fazem os pagamentos. Não passam factura. Paga-se e a
seguir coloca-se o corpo na morgue”, afirma o tio.
Eduardo
Muatxivumbi denuncia também a cobrança oficial de 2000 kwanzas para a emissão
de uma certidão de óbito. “Ficámos frustrados com tantas cobranças, e já não
pagámos pela certidão de óbito. Enterrámos o André Silva mesmo assim”, lamenta.
E para as famílias
sem recursos? “Quem não tem dinheiro, tem de enterrar logo o corpo. Sem
pagamento não há lugar na morgue”, adianta o activista local Salvador Fragoso.
O responsável,
que prefere não ser identificado pelo nome, confirma: “É verdade. Por falta de
energia na localidade, o governo deu-nos um gerador, mas não fornece
combustível. Por isso, pedimos às famílias para comparticiparem na conservação
dos cadáveres dos seus entes queridos.”.
Uma vez que o
combustível abastece o hospital no seu todo, e ainda as residências da
administração local e outros beneficiários vizinhos, o responsável justifica as
razões para a discriminação entre mortos e pacientes.
“O gerador só
funciona à noite, das 18h00 às 23h00, e, depois, para a remoção dos corpos,
entre as 4h00 e as 8h00. Durante o dia usamos a luz natural para tratar os
pacientes. Os médicos têm arriscado operações mesmo sem energia”, revela a
fonte hospitalar.
O Hospital
Regional de Cafunfo dispõe de cinco médicos norte-coreanos e um angolano, e dá
assistência aos municípios do Cuango, Caungula, Xá-Muteba, Lubalo,
Capenda-Camulemba e Cuilo. Oficialmente, o hospital atende uma população de
mais de 324 mil habitantes, correspondente ao total dos seis municípios. Estes
números indicam a existência de um médico por cada 54 mil habitantes.
De forma
peremptória, os funcionários hospitalares entrevistados corroboram a ideia de
que “o hospital é regional de nome apenas”. Como agravante, referem que os
funcionários em regime de contrato têm os salários em atraso desde Fevereiro, e
que os funcionários efectivos não receberam o salário de Abril..
Contactada por
Maka Angola, Angélica Kaumba Sassão, a administradora municipal do Cuango, manifesta-se surpreendida diante da
informação de que são exigidos pagamentos aos familiares dos mortos para uso da
morgue. “Eu não tenho conhecimento. Deve ser um trabalhador que o faz sem o
conhecimento da direcção”, remata.
Quanto à denúncia
dos familiares de que os pagamentos são feitos na secretaria da direcção do
hospital, Angélica Kaumba Sassão afirma: “Não tenho essa informação. Há 15
dias, enviámos combustível para abastecer o gerador. Para mim é uma surpresa.”
A administradora
garante que irá questionar o director do hospital acerca dos referidos
pagamentos.
Todavia, o mesmo
gerador também tem sido usado para fornecer energia eléctrica à vizinhança,
nomeadamente às residências da administração municipal, do secretário do MPLA,
comandante da Polícia Nacional, procurador, entre outros responsáveis locais.
De igual modo, providencia energia à Escola Deolinda Rodrigues.
Há qualquer coisa
aqui que não está a bater certo.
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