28 março 2016
Luanda - São 2:00
da madrugada. À entrada, o trânsito adensa-se. As viaturas fazem fila para
entrar. A maioria entra com caixões, outras levam mortos. Em cinco horas, até
às 7:13, 235 cadáveres sairão da morgue do Hospital Josina Machel, em Luanda,
para serem enterrados. É uma média de saída de um caixão a cada minuto e 20
segundos.
Estão ali 474
corpos
O governo pode
sonegar os dados. Mas não há como esconder os mortos. Basta contá-los, um por
um, à saída. É a rotina na morgue do maior hospital do país.
Há uma epidemia
de febre-amarela, e a malária mata a um ritmo assustador. Como sobressai entre
as conversas de familiares, são estas as duas principais causas da mortandade a
que se assiste em Luanda. Numa cidade com mais de seis milhões de habitantes,
aqueles que recorrem ao Josina Machel são apenas uma pequena amostra da
realidade.
“Pai [expressão
de respeito], não vale a pena. É muita gente a morrer. Nunca vi coisa igual”,
lamenta um funcionário da morgue, encarregado de guardar e remover os corpos.
Abana a cabeça e vai logo atender à chegada de mais.
Numa pequena
viatura de duas portas, três senhoras sentadas, vestidas com panos coloridos,
levam ao colo o corpo de uma criança, enrolado num pano.
São 3:30 da
madrugada. Aumenta o já caótico tráfego à entrada da morgue, multiplicando-se o
número de entradas e saídas.
Na recepção não
há um minuto de descanso. Deveria formar-se uma fila por ordem de chegada, mas
há problemas de espaço para a demanda de cadáveres. Estabelece-se um pequeno
negócio paralelo. Custa seis mil kwanzas para obter espaço imediato.
Não há um
computador ou uma máquina de escrever. É tudo manual, caótico.
Vou até às
câmaras frigoríficas, ver para crer. Não pergunto nomes, nem causas. Quero
apenas vê-los, ouvir, anotar a realidade, estar ali presente.
Na parte traseira
da morgue, o cenário fala por si. Cada família leva o seu bidão com água, são
todos amarelos, de 20 litros, banheira, sabão, o necessário para darem banho
aos seus mortos.
Conto mais de 20
corpos espalhados, a serem lavados ao ar livre pelos familiares, vestidos,
aprumados para o adeus final aos entes queridos. No chão, as águas não
escorrem. Misturam-se com sangue, com os plásticos abandonados, luvas,
máscaras, panos, roupas retiradas dos mortos. Há uma fossa entupida, com águas
putrefactas, no mesmo local.
“Isso é país!
Isso é país! Isso é país!”, vocifera um familiar.
Passo por entre a
lavandaria improvisada de mortos, procurando controlar a náusea e evitar as
poças de água. Muitos calçam apenas chinelas. Há mulheres descalças. A maioria
tem máscaras e luvas. Noto que há alguns lençóis brancos, por estrear,
destinados a envolver determinados corpos. Passo por um jovem que segura um
fato e uma camisa branca imaculada pelo cabide. No chão, está o seu morto a ser
despido, antes do banho. Ao lado, outros jovens retiram o plástico que forra o
caixão. Três senhoras atrapalhadas perguntam em voz alta onde podem lavar o seu
parente. Parecem perdidas, incrédulas. Várias vozes sugerem espaços livres para
que prossigam com a tarefa. Não há iluminação adequada na lavandaria.
Improvisa-se.
Passo pelos
compartimentos assinalados como banhos para homens, mulheres e crianças.
Praticamente não têm iluminação e as condições não são melhores que ao ar
livre, apenas conferem alguma privacidade. Estão todos ocupados.
As câmaras
Naquele corredor,
estão numeradas, de ambos os lados, um total de 174 gavetas frigoríficas. Pelo
chão há luvas, máscaras, restos de roupa, tudo espalhado pelo chão molhado,
sujo e ensanguentado. Um grupo cerca uma gaveta. Estão lá quatro corpos,
empilhados uns por cima dos outros, com as cabeças viradas para os pés uns dos
outros, de forma alternada. Apenas os separam as roupas que vestem. É o que os
identifica. Não estão em sacos mortuários (body bags), nem sequer trazem no
tornozelo ou no pulso uma etiqueta de identificação.
Estão ali 474
corpos.
O engarrafamento,
a modernidade e a candonga
São 4:30 da
madrugada. Há engarrafamento numa extensão inferior a 800 metros, entre a ponte
do Zamba 2 e a entrada da morgue, na Rua da Samba. Viaturas entram e saem com
caixões a todo o momento, causando o caos no tráfego. Familiares e amigos
transportam caixões a pé, atravessando a Rua da Samba para o outro lado, no
Bairro Azul, onde estacionaram viaturas para evitar o engarrafamento. Alguns
estacionam mais abaixo.
Vejo um pai, alto
e magro, a caminhar com um caixão minúsculo, forrado em plástico, debaixo do
seu braço. É para um recém-nascido. O seu olhar é vago, distante.
Do outro lado da
rua, da morgue dilapidada, situa-se o novo edifício da Assembleia Nacional,
orçado em US $311 milhões.
Da entrada da
morgue, vê-se a abóbada rosada da Nova Assembleia Nacional, erguida do outro
lado da estrada a um custo de US $311.2
milhões (pagos através de fundos secretos à disposição do Presidente). Foi
inaugurada em Novembro passado, imitando o Capitólio dos Estados Unidos, mas as
obras ainda estão por concluir. Os deputados foram informados que a manutenção
mensal do edifício custa o equivalente a US $1.7 milhão. Um pouco mais acima é
a Cidade Alta, a menos de 500 metros, onde se situa o Palácio Presidencial. No
mesmo quarteirão da morgue está o Ministério da Saúde. Do outro lado do muro
está o maior hospital pediátrico do país, que ali deposita mais de 20 crianças
por dia.
Um quilómetro a
norte, está a Marginal de Luanda, símbolo da ilusão de modernidade do regime do
MPLA e de José Eduardo dos Santos. É uma obra de requalificação da Baía de
Luanda, que custou US $360 milhões. Tem palmeiras importadas da Flórida, nos
Estados Unidos da América. Os jardins são bem tratados. Têm sempre água. A Baía
é bonita, não importa o mau cheiro das fossas que despejam para lá. Na morgue,
cada um leva o seu bidão com água para cuidar dos finados.
Tanto na travessa
como na área de estacionamento da morgue, consolida-se o pequeno comércio. Três
jovens com garrafas térmica, copos de plástico, pacotinhos de instantâneo e de
açúcar vendem café. Algumas mulheres vendem luvas e máscaras descartáveis para
que os familiares possam entrar na morgue, identificar, remover os seus
cadáveres das gavetas e dar-lhes banho. O par de luvas custa 100 kwanzas, assim
como a máscara. Uma senhora reclama, dizendo que há uns meses atrás aqueles
itens custavam 20 kwanzas cada. Conhece bem a morgue e os seus negócios.
Prefere ir assim. Ofereço-lhe as luvas. Falo-lhe das doenças que pode apanhar.
Calça chinelas, não tem protecção para os pés.
Mais logo, a
filha do presidente, deputada do MPLA, Tchizé dos Santos, aparecerá nos ecrãs
da Televisão Pública de Angola (TPA) como madrinha de um Tea Club, a oferecer
luvas, máscaras, seringas e outros materiais descartáveis aos hospitais. Os
dirigentes têm materiais médicos descartáveis para oferecer aos hospitais, para
benefício da imagem pessoal em tempo de crise. Os candongueiros também têm,
para vender.
Outro negócio
próspero é o do whisky sul-africano em pacotinhos. Cada um custa 100 kwanzas.
Vende-se também como desinfectante das mãos. Depois de tratar de uma vintena de
corpos, um dos funcionários pede um pacote de whisky, porque sente comichão nas
mãos, usa umas luvas de cozinha, diz que as descartáveis se rasgam facilmente e
que a morgue não lhes providencia material básico de trabalho. O vendedor
lembra-lhe que já tem uma dívida de 300 kwanzas.
A Câmara Cinco
O funcionário
tinha acabado de depositar um corpo na famosa Câmara Cinco, a que uns chamam
“porão”, outros “contentor”. O tráfego de mortos é de tal ordem, que a câmara
se mantém praticamente sempre aberta até ao período de acalmia, depois das
7:00. É um congelador único com 450 corpos empilhados, em estantes e no chão. É
aqui que se depositam os acidentados, os não identificados, os corpos levados
pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC) e outras forças policiais. O cheiro
nauseabundo de corpos em decomposição é insuportável.
À entrada da
Câmara Cinco, o corrupio de gente em busca dos seus entes queridos é constante.
Ode à menina
Passo, mais uma
vez, pela lavandaria, incapaz de compreender, de aceitar tamanha desumanidade institucional,
o destino de um povo perdido. À entrada da câmara principal, vejo uma mulher
robusta, sentada, vestida de panos e uma camisola. Ao seu colo tem uma menina,
de menos de dois anos, aninhada, vestida apenas com uma fralda. Serena-a com um
cântico religioso, enquanto duas outras mulheres lhe limpam o corpo, fazendo
coro. Cada uma delas segura-a numa mão e afagam-na com toda a ternura. Fazem o
mesmo com os pés. É um momento de amor, de paz, que devolve algum sentimento
humano àquele lugar. Por um momento, tive esperança. Retiram-lhe, então, uma
pequena fita adesiva que tem colada à testa, com o seu nome. Está pronta para a
partida.
As três
conversadoras
Cá fora, à
entrada, três mulheres conversam entre si sobre a mortandade em Luanda, o
serviço público de saúde e as consequências do estado da Câmara Cinco. Passa o
vendedor de whisky, a líder da conversa reclama um pacote. “Eu normalmente não
bebo, mas aqui não há como. Dói ver tudo isso”, justifica-se. Conta então como
os seus vizinhos receberam do Hospital Josina Machel a notícia de que o seu
ente querido tinha falecido durante a madrugada e de que o seu corpo fora
transferido para a morgue. Aparentemente, na madrugada seguinte, alguns
familiares identificaram o corpo apenas pelos calções pretos que vestia,
retiraram-no da Câmara Cinco, deram-lhe banho, colocaram-no no caixão e
levaram-no para casa, ao que se seguiu o enterro. Dias depois, o “morto”
apareceu em casa, tendo recebido alta do hospital. “Agora não ficou muito bom
da cabeça, depois de saber que a família já tinha feito o seu funeral”, conta a
mulher.
Outra das
mulheres refere-se a um engano de identidades na entrega de cadáveres, que
levou uma família a enterrar uma desconhecida. “Os bacongo, os langas [termo pejorativo extensivo aos cidadãos da
RDC] quando deram conta que a sua irmã já tinha sido enterrada por engano,
conseguiram identificar a família e foram lá exigir que desenterrassem o
corpo”, e desvia a conversa para a classificação dos grupos etnolinguísticos,
distinguindo aqueles que a seu ver sabem defender os seus interesses dos que se
sujeitam a todo o tipo de abusos.
Ao lado, indigna-se um senhor que volta e
meia molha a máscara que lhe cobre o rosto com whisky de pacote, para
neutralizar o cheiro fétido do local. Insurge-se contra o que considera
conversa tribalista e explica que ficou sete anos praticamente sem conseguir
calçar sapatos, devido a uma doença que lhe afectava os pés. Por falta de
dinheiro para ser transportado para a África do Sul, a Namíbia ou a Europa,
deslocou-se até à República Democrática do Congo, onde em pouco tempo recuperou
a saúde. “O médico nem sequer aceitou os US $500 que lhe ofereci por me ter
tratado. Estamos sempre a falar mal dos bacongo e
dos congoleses,
mas olha que o serviço deles de saúde, mesmo com guerra e corrupção, não se
compara com a gatunice e a desumanidade dos angolanos.”
Entra nesse
momento um carro de uma agência funerária. As três senhoras aguardavam por essa
viatura. Já há algum tempo que haviam dado banho ao seu menino. Vestiram-no
todo de branco e taparam-no com um lençol. Está ali na “pedra”, como chamam à
bancada de cimento, na antessala reservada para as crianças. A interlocutora
pede imensas desculpas ao ofendido. As três despedem-se, retiram o pequeno
caixão branco da viatura e começam a chorar. Vão à bancada, colocam o menino no
seu repouso, transportam-no para o carro numa choradeira e partem.
São 7:13. Saíram
até agora 235 cadáveres. O ritmo abranda. Já não há lavagem de corpos. Surge
pessoal de limpeza para dar uma aparência de normalidade àquele lugar. É como
se tivesse tido um pesadelo. É sábado.
O Ministério da
Saúde
Na segunda-feira
vou ao gabinete do ministro da Saúde, Luís Sambo, a menos de dez minutos de
caminhada da morgue. O impressionante sistema moderno de torniquetes, de
activação electrónica, que se vê nos corredores parece já não funcionar.
Explico à
secretária a razão do meu pedido de audiência. Transmito resumidamente o que vi
na morgue. A secretária informa-me da ausência do ministro e encaminha-me para o
seu assessor jurídico, Adalberto Miguel. Naquele instante entra o ministro.
“Boa tarde”, cumprimenta-me, seguindo para o seu gabinete.
O assessor toma
nota do meu relato sobre o estado de sítio na morgue, que é ali ao lado.
Agradece. Refere que o ministro, nomeado para o cargo a 5 de Março, “começará a
conceder audiências dentro de duas semanas”. O ministro “é afável, de fácil
trato”, sublinha o assessor.
Até à sua
nomeação, Luís Sambo exercia o cargo de secretário de Estado da Saúde, para o
qual havia sido nomeado nove meses antes. Exercera ainda, ao longo de dez anos,
o cargo de director regional para África da Organização Mundial da Saúde.
Crueldade e
insensibilidade
Depois de três
dias a testemunhar aquilo que se passa na morgue, seria francamente
insuficiente afirmar que o país tem um líder insensível e cruel, um regime
desumano.
Acumulam-se as
perguntas. Como é isto possível? Quem são os decisores que permitem que isto
aconteça? Por que razão o povo angolano, que sofre há tanto tempo, se sujeita a
isto? Quando acabará o sofrimento? O problema é que todos sabemos a resposta,
mas estamos imobilizados pelo medo e pela apatia. A passividade dos cidadãos
diante da catástrofe é absolutamente alarmante.
Os pesadelos
pertencem à noite e o relógio não pára.
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