30 março 2016
Lisboa - Henrique Luaty da Silva Beirão, 33
anos, é o improvável herói de um movimento de democratização que cresce todos
os dias, tirando o sono ao presidente José Eduardo dos Santos. O ativista está
a mudar a História de Angola. No dia em que Luaty foi condenado a cinco anos e
meio de prisão, republicamos livremente um texto de José Eduardo Agualusa,
saído a 17 de outubro de 2015 na revista E, no qual o autor relata a
importância do rosto mais visível dos 17 ativistas que Angola condenou a penas
de prisão efetiva
*Eduardo Agualusa
Fonte: Expresso
Vivia-se em todo
o mundo, e em particular no continente africano, a euforia da Primavera Árabe.
A 17 de dezembro de 2010 um jovem tunisino, Mohamed Bouazizi, suicidou-se,
ateando fogo ao próprio corpo, em protesto contra a injustiça social. A morte
de Bouazizi deflagrou uma série de protestos, levando o Presidente Ben Ali a
fugir para a Arábia Saudita apenas dez dias mais tarde. O movimento democrático
propagou-se depois pela Argélia e Egito.
Durante alguns meses os democratas dos
países africanos sujeitos a regimes autoritários viveram a ilusão de que a
Primavera Árabe floresceria em todo o continente.
Naquela noite, 27
de fevereiro de 2011, perto de três mil jovens juntaram-se nas instalações do
Cine Atlântico, em Luanda, para assistir ao concerto de Bob da Rage, um jovem
músico luandense radicado em Lisboa. O evento contava ainda com a presença de
MCK e de Ikonoklasta, um dos nomes de guerra de Luaty Beirão, à época ainda
pouco conhecido fora do universo do hip hop angolano. Era o primeiro concerto
em Angola de Bob da Rage. O jovem músico lembra-se muito bem dessa noite:
“Disse ao Luaty que entre o público estava um dos filhos do Presidente, o
Danilo, que sempre foi meu fã.”
Então, sem
prevenir Bob, que foi completamente apanhado de surpresa, assim como os
organizadores do evento, Luaty subiu ao palco e mostrou porque escolhera o nome
de Ikonoklasta. “Sou um kamikaze!” — Gritou, antes de se voltar na direção de
Eduane Danilo dos Santos: “Senhor Danilo vai dizer ao teu papá. Não queremos
mais ele aqui. 32 é muito. É muito! (...) Senhor Dino Matross, senhor Virgílio
de Fontes Pereira, todos pro caralho! Paulo Flores deu aquela dica, explorador
dos oprimidos — fora!”
Convocou então o
público a participar numa manifestação a favor da democracia: “Tragam só
panelas, tragam só mambos que não tenham agressão. Muito obrigado.”
A manifestação
fora convocada semanas antes, de forma anónima, através das redes sociais, para
o dia sete de março, na Praça da Independência. Luaty abandonou o palco, com o
público enlouquecido, e Bob da Rage substituiu-o, atuando durante hora e meia.
Quando finalmente saiu foi para discutir com Luaty: “Eu estava furioso. Hoje,
sabendo tudo o que aconteceu a seguir, compreendo o que o Luaty fez e acho que
fez bem. Mas naquela altura achei um desrespeito para comigo, para com os
organizadores e até para com o filho do Presidente.”
Os dirigentes
angolanos receberam a notícia sobre a desabrida intervenção de Ikonoklasta no
Cine Atlântico com enorme susto. Alguns dos rostos mais conhecidos do MPLA
desfilaram, aterrorizados, pelos estúdios da Televisão Pública de Angola, TPA,
nos dias seguintes, enfatizando as enormes diferenças entre os países do Norte
de África e Angola. Na intimidade não escondiam o espanto por verem alguém como
Luaty, filho de um velho militante do partido, João Beirão, primeiro diretor da
FESA, Fundação Eduardo dos Santos, a assumir posições críticas ao regime.
Dias depois,
Luaty gravou e colocou nas redes sociais um vídeo a desculpar-se diante de
Eduane Danilo, ao mesmo tempo que respondia aos que o acusavam de ser um “filho
do regime”: “Eu chamo-me Luaty Beirão, sou filho de João Beirão, o primeiro
diretor da FESA, Fundação Eduardo dos Santos, sou portanto, como me acusam, um
filho do regime, mas não vejo porque isso me obrigaria a seguir a linha de
pensamento do meu pai. (...) Tenho o meu próprio cérebro.”
Fez questão,
contudo, de realçar que o pedido de desculpas não era extensivo aos dirigentes
políticos que insultara. Lamentava apenas não ter citado mais nomes: “Quando
temos uma elite governante que faz discursos com ameaças, sinceramente... A
reação teve o mesmo peso e medida, da maneira que podemos fazer. Eu reagi, se
houve um abuso do direito de liberdade de expressão, eu estou à espera, e
entendo que num país com leis as pessoas que as violam tenham as suas
consequências legais. A estas personalidades não sinto o dever de pedir
desculpas.”
Nunca se soube ao
certo quem convocou a primeira manifestação independente contra o regime de
José Eduardo dos Santos. Provavelmente, estudantes angolanos na Europa. O que
se sabe é que nesse dia apareceram na Praça da Independência apenas 12 jovens,
logo detidos pela polícia. Um desses jovens era Luaty Beirão. Nos meses
seguintes, Luaty organizou uma série de outras manifestações pacíficas, várias
delas violentamente reprimidas pela polícia ou por milícias armadas, ligadas a
altos dirigentes angolanos.
No dia 10 de março de 2012, no bairro do Cazenga,
em Luanda, cerca de quarenta manifestantes foram cercados e atacados por uma
dúzia de homens empunhando bastões, facas e pistolas. Luaty foi para o hospital
com uma ferida aberta na cabeça. O economista Filomeno Vieira Lopes,
secretário-geral do Bloco Democrático, um pequeno partido político, sem
representação parlamentar, mas com relativa influência nos meios intelectuais,
procurou refúgio numa residência particular. As milícias forçaram a entrada na
residência, agredindo-o com barras de ferro. As imagens de Luaty e de Filomeno
Vieira Lopes, com os rostos ensanguentados e a roupa rasgada, provocou grande
comoção e revolta em Luanda, inclusive em círculos próximos do poder.
Na manhã de 11 de
junho de 2012, Luaty Beirão dirigiu-se ao aeroporto de Luanda. Iria viajar para
Lisboa com o objetivo de participar numa digressão do grupo Batida, de que foi
integrante, juntamente com Pedro Coquenão. Pouco antes de entrar no avião, um
funcionário do aeroporto reconheceu-o, confessou a admiração que sentia por
ele, enquanto músico e ativista cívico, e disse-lhe que vira dois polícias a
mexer na sua bagagem. Ao chegar a Lisboa, muito nervoso, Luaty foi conduzido
para uma sala onde o interrogaram. Na única bagagem que trouxera no porão, uma
roda de bicicleta, foi encontrada mais de um quilo de cocaína. A polícia
portuguesa terá recebido uma denúncia vinda de Luanda. O juiz de instrução
criminal deixou Luaty sair em liberdade, após ter dado como provado que o
músico fora vítima de uma cilada.
Não se conhece
qualquer reação do Governo português perante esta situação. Vejamos: o Governo
angolano tentou incriminar um cidadão que também é português, introduzindo
ilegalmente cocaína em Portugal. O que fez Portugal? Nada. Portugal permaneceu
em silêncio. Este episódio, que não mereceu grande interesse nem da imprensa
portuguesa nem dos partidos na oposição, ilustra de forma exemplar o grau de
submissão do poder político e económico em Portugal relativamente ao regime
angolano.
A detenção em
Luanda, no passado dia 20 de junho, de 15 jovens ativistas, acusados de
tentativa de golpe de Estado não me surpreendeu, a não ser pelo teor da
acusação. Poucos dias antes conversara com Luaty, no Facebook, a propósito de
uma manifestação que ele estava a organizar. Era algo muito simples — um
“buzinão”. Luaty e o seu pequeno grupo de “jovens revolucionários”, ou revus,
como se tornaram conhecidos, pretendiam convencer o maior número possível de
cidadãos a buzinarem, num determinado dia e hora, a favor da democracia e dos
direitos humanos. Pediu-me um depoimento para apoiar a iniciativa e eu
enviei-lhe um vídeo, acrescentando não acreditar muito na eficácia do protesto:
“Há que ir tentando estas pequenas buzinadelas daqui, manifestações espontâneas
dali” — respondeu. E acrescentou: “Temos de estar dispostos para arcar com as
consequências da nossa insolência e esperar que cada uma destas pequenas
iniciativas possa servir de gota de água, até fazer o copo transbordar. Temos
estado a refletir sobre o day after, porque a fruta já está madura e temos de
estar preparados para quando ela cair. Não podemos ser apanhados de calças na
mão.”
O próprio
Presidente da República, José Eduardo dos Santos, defendeu, num discurso
pronunciado diante do Comité Central do seu partido, a dois de julho, a
acusação de tentativa de golpe de Estado, comparando o sucedido com os
dramáticos acontecimentos de 27 de maio de 1977, na sequência dos quais o
regime de Agostinho Neto desencadeou uma vaga repressiva, de extrema violência,
que custou a vida de milhares de angolanos.
A acusação de
golpe de Estado baseia-se essencialmente em dois factos: quando foram presos,
os jovens revus estavam a discutir a adaptação para língua portuguesa de um
ensaio muito conhecido de Gene Sharp, “From Dictatorship to Democracy, A
Conceptual Framework for Liberation”, o qual propõe uma série de estratégias de
combate contra regimes autoritários por meios pacíficos. Sharp é um conhecido
teórico pacifista, tendo sido já por quatro vezes nomeado para o Prémio Nobel
da Paz. O livro, publicado em 1994, inspirou também alguns dos jovens egípcios
envolvidos nos protestos que derrubaram Hosni Mubarak. O segundo facto apontado
pelo Ministério Público angolano para apoiar a tese de tentativa de golpe de
Estado é ainda mais extraordinário: os jovens estariam na posse de um
documento, nem sequer produzido por eles, no qual se listam personalidades
integrantes de um futuro Governo de Unidade Nacional.
Pedro Coquenão,
39 anos, conheceu Luaty em 2002. Na época, Coquenão realizava um programa na
Rádio Marginal, o Radio Fazuma. Um dia recebeu uma mensagem de um ouvinte,
Luaty Beirão. Não prestou muita atenção ao nome até tropeçar, meses depois, num
tema, “Os Mosquitos Inofensivos”, a lembrar Fela Kuti, que o maravilhou. Ao ver
os créditos percebeu que o tema era da autoria de Luaty e escreveu-lhe.
Iniciou-se assim uma colaboração que se prolongou por alguns anos e teve como
resultado, entre outros, o documentário “É Dreda Ser Angolano”, baseado no
disco “Ngonguenhação” do conjunto Ngonguenha. Mais do que isso, aquela primeira
troca de mensagens deu início a uma bela amizade: “Não é muito difícil gostar
dele, concordando ou discordando do que pensa. Ouvimos muito o que cada um diz.
Impressiona-me, ao visitá-lo na cadeia, abraçá-lo e sentir-lhe os ossos. Isso
custa-me muito.”
Antes da
intervenção cívica, antes da música, Luaty Beirão concluiu uma primeira
licenciatura em engenharia eletrotécnica pela Universidade de Plymouth, no
Reino Unido, e uma segunda, em Economia e Gestão, pela Universidade de
Montpellier, em França. Após os estudos decidiu que era chegada a altura de
conhecer o continente africano. Pareceu-lhe que a melhor maneira de o fazer
seria viajando, por terra, de Marrocos até Angola. Fez-se à estrada com 115
euros no bolso, quatro T-shirts, três calções e um saco com dois quilos de
frutos secos (Luaty é vegetariano). Contava com a solidariedade da gente
simples que fosse encontrando no caminho e não se desiludiu. Quando entrou em
Luanda, seis meses mais tarde, ainda lhe sobrava um quilo de frutos secos.
Em julho de 2012,
Luaty deu uma entrevista ao jornalista Rafael Marques, publicada no site Maka
Angola, durante a qual falou sobre esta viagem: “A minha intenção era palmilhar
por terra o máximo de países africanos possíveis, beber da experiência,
enriquecer-me espiritualmente. Eu não sou crente, mas acredito no ser humano,
acredito que existe a bondade ainda suficiente para nos inspirar, para nos
servir de combustível, para sermos também pessoas melhores. E isso para mim é que
é a manifestação do divino. Porque não tenho religião, não acredito em Deus,
sou ateu, mas acredito nos seres humanos. Então, foi essa busca da bondade do
ser humano, essa partilha, esse encontro, que eu sabia que iria marcar-me de
uma maneira que até hoje não percebo plenamente.”
Serena Mansini,
irmã de Luaty por parte da mãe, recorda o maior sonho do irmão: “Ele sempre me
disse que gostaria de sair de Luanda, e de ir viver para o interior de Angola.
Quer construir uma escola no meio do mato, dar aulas aos miúdos, e ao mesmo
tempo cultivar a terra, fazendo agricultura biológica. Durante aquela viagem
por África ele parou um tempo no Gana, para fazer um pequeno curso de
agricultura biológica.”
Serena, 23 anos,
a viver em Lisboa desde a adolescência, foi a responsável por uma recente
vigília, no dia nove de outubro, no Largo de São Domingos, destinada a chamar a
atenção da opinião pública portuguesa para a situação do irmão e dos restantes
presos políticos angolanos: “O meu irmão ensinou-me muita coisa. Aprendi com
ele que uma única pessoa pode fazer a diferença. Quando um se levanta, vários
outros o podem seguir.”
A prisão dos 15
jovens democratas desencadeou um movimento de solidariedade, estruturada a
partir das redes sociais. Alguns dos mais ativos elementos desse grupo são
rostos muito conhecidos da vida cultural angolana, como o ator Orlando Sérgio,
o primeiro negro a representar o Othelo em Portugal; o artista plástico
Kiluangi kia Henda, o escritor Ondjaki, o fotógrafo Rui Sérgio Afonso, os
músicos Pedro Coquenão e Aline Frazão, a arquiteta e curadora Paula Nascimento
e o cineasta Mário Bastos. Nos primeiros vídeos produzidos pelo grupo
participaram personalidades angolanas como os músicos Kalaf Epalanga e Paulo
Flores, o artista plástico Nastio Mosquito, e ainda figuras públicas de outras
nacionalidades, como o escritor moçambicano Mia Couto, o cantor e compositor
brasileiro Chico César, ou a espanhola Pilar del Rio, presidente da Fundação
Saramago. O grupo organizou vários espetáculos, em Luanda e Lisboa, com o
objetivo não apenas de chamar a atenção para a situação dos presos políticos
mas também de angariar fundos que permitissem apoiar as famílias dos detidos.
Após o início da
greve de fome de Luaty, e de mais três companheiros seus (os quais, entretanto,
suspenderam essa forma de protesto), o movimento expandiu-se ainda mais, saindo
das redes sociais para as ruas, sob a forma de um conjunto de vigílias, a
última das quais, na noite do passado domingo (11 de outubro), foi interrompida
pela chegada de forças policiais fortemente armadas.
Um aspeto
interessante do “movimento revu” tem a ver com o facto de ter conseguido juntar
jovens de classe média e média-alta, pertencentes a famílias dos círculos do
poder, e jovens de origem humilde, como Manuel Nito Alves, preso pela primeira
vez com apenas 17 anos, por distribuir T-shirts com frases contra o Presidente
José Eduardo dos Santos.
Este é já o mais
importante movimento cívico a emergir em Angola desde a independência, e o
maior desafio enfrentado pelo regime desde o fim da guerra civil. Um pouco à
semelhança de Luaty, um “filho do regime”, também muitos dos jovens ativistas
que estão por detrás do amplo movimento de solidariedade que cresce em Angola
são originários de famílias pertencentes aos círculos do poder político e
militar. Nas redes sociais são cada vez mais frequentes os alertas e
comentários contrários à atuação dos dirigentes angolanos, por parte de
conhecidos militantes e simpatizantes do MPLA.
Ismael Mateus, um
dos mais respeitados jornalistas angolanos, publicou na passada terça-feira, na
sua página no Facebook, um texto que exprime muito bem a perplexidade e
insatisfação de um grande número de angolanos, próximos do partido no poder,
mas que não se reconhecem na forma como os dirigentes angolanos estão a
enfrentar a presente crise: “Está muito claro aos olhos de todos que o nosso
Governo, os nossos dirigentes não estão a saber lidar com a situação. Estão a
seguir o caminho da manipulação, da mentira e da mania da perseguição. Em vez
de enfrentar de modo adulto e responsável toda esta crise, o Governo está a
portar-se como um pai autoritário que confrontado pelos filhos decide
trancá-los em casa, para provar quem manda. Mesquinhices, meras mesquinhices,
que podem pôr em perigo a estabilidade nacional. Querem-nos reféns do medo, o
medo de falar, o medo de pensar, e agora até o medo de orar. Os nossos
dirigentes revelam-se assim mais ingénuos do que imaginávamos, ao acreditarem
que se consegue parar a força do povo com armas na mão. Um erro político crasso
para quem tem a nossa experiência, e um grave problema de memória histórica,
que os impede de ver a nossa própria lição, onde todo o poder militar colonial
não conseguiu impedir o grito pela liberdade.”
Nos próximos
dias, nas próximas horas, não se irá jogar apenas o destino de Luaty Beirão.
Irá jogar-se também o destino de José Eduardo dos Santos. O Presidente angolano
ainda vai a tempo de libertar todos os presos políticos e de retomar o processo
de democratização. A cada hora que passa, à medida que se deteriora o estado de
saúde de Luaty, deteriora-se também a imagem de José Eduardo dos Santos.
Espero que Luaty
possa regressar a casa, muito em breve, para abraçar a esposa, a fotógrafa
Mónica Almeida, e a filha, a pequena Luena, com apenas dois anos de idade. Não
poderá tão cedo, imagino, cumprir o seu sonho de construir uma escola algures
na Huíla, de onde é originária parte da família (tem também raízes em Aveiro),
e dedicar-se ao ensino e à agricultura biológica. Mas será — já é! — um herói
vitorioso. O que existe hoje em Angola ultrapassou a simples vaga de
solidariedade com um grupo de jovens injustamente presos, para se transformar
num verdadeiro movimento pró-democracia. O que quer que venha a acontecer, algo
mudou para sempre. A História de Angola não será a mesma e Luaty Beirão faz
parte dela.
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